OS DANOS DA COVID PERSISTENTE. E A MOBILIZAÇÃO POR APOIO

Camilo Rocha
Pessoas relatam sintomas ou sequelas da doença do novo coronavírus por períodos prolongados. Campanhas e associações pedem reconhecimento maior da condição e inclusão em políticas públicas
“Long haul”, em inglês, significa longa distância. A expressão vem sendo usada no contexto da covid-19 por pessoas em que os sintomas ou sequelas da doença persistem por períodos prolongados. Os afetados pela covid persistente incluem pessoas que há meses não sentem o cheiro da comida ou não conseguem subir um lance de escadas sem se sentirem exaustos.
As consequências do novo coronavírus nos organismos dessas pessoas são duradouras e incluem impactos nos sistemas respiratório, neurológico e cardiovascular. Se a maior parte das pessoas se recupera da passagem do vírus no corpo, para os “long-haulers” ele deixa um legado de condições crônicas.
As histórias de pessoas que vivem há semanas ou meses com esses desafiantes efeitos da covid-19 revelam o quanto é preciso ainda aprender sobre a doença. De acordo com relatos em grupos de apoio e reportagens na imprensa, uma parte significativa dos “long-haulers” teve apenas uma forma moderada da covid-19. Por isso, muitos nem chegaram a ser hospitalizados.
Grupos de apoio a pessoas nessas condições reclamam da invisibilização. De acordo com uma associação britânica para indivíduos com covid persistente, a LongCovidSOS, se os sintomas não são considerados sérios, as pessoas são mandadas para casa e muitas vezes têm de lidar com os problemas sozinhas. “Contrariando a visão de que aqueles que não foram internados têm apenas uma doença ‘leve’, muitas dessas pessoas enfrentam sintomas debilitantes e assustadores”, afirmou a entidade em nota.
Com o desenrolar da pandemia, pesquisadores olham cada vez mais para a covid-19 como uma doença abrangente, que afeta diversas partes do organismo, e não apenas o sistema respiratório. Do mesmo modo, as pesquisas com pacientes que sofrem com sintomas e sequelas a médio e longo prazo começam a desafiar ideias iniciais sobre a atuação e a duração da covid-19.
Em tempos de empolgação com a diminuição de números de casos e mortes em estados do Brasil, junto com iniciativas de retomada generalizada de atividades, as histórias envolvendo a covid persistente servem para lembrar que ainda navegamos por território em grande parte desconhecido.
Sensações da covid persistente
“É como se todo dia você enfiasse sua mão em um balde de sintomas, jogasse alguns na mesa e dissesse: ‘isso aqui é para você hoje’”, afirmou David Putrino, neurocientista e especialista em reabilitação no hospital Mount Sinai, em Nova York, em entrevista à revista The Atlantic.
Entre os sintomas mais comumente relatados por pessoas a médio e longo prazo estão fadiga extrema, dor de cabeça, tosse contínua, falta de ar, confusão mental, tontura, febre, perda de olfato e paladar e depressão. Um levantamento feito no Reino Unido por meio do aplicativo Covid Symptom Study mostrou que mais de 300 mil pessoas no país manifestaram sinais por mais de um mês e 60 mil por mais de três meses.
Em outro estudo, realizado na Alemanha, pesquisadores constataram que 78% dos pacientes que tiveram covid-19 e foram posteriormente acompanhados por profissionais de saúde apresentaram desempenho cardíaco fora do normal entre dois ou três meses depois do primeiro diagnóstico para a doença.
Uma pesquisa realizada nos EUA pelo CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, do governo) com 292 ex-pacientes evidencia como os afetados pela covid persistente estão bem longe do estereótipo do idoso portador de comorbidade que se convencionou categorizar como o grupo de risco. Entre pessoas que tiveram a doença com idades entre 18 e 34 anos, um em cada cinco não havia retornado a seu estado de saúde normal até três semanas depois do primeiro diagnóstico positivo.
Tim Spector, professor de epidemiologia genética do King’s College de Londres que encabeçou o estudo com o aplicativo Covid Symptom Study, afirmou que, de acordo com os dados colhidos, a covid persistente revelou ser duas vezes mais comum em mulheres. A média de idade dessas mulheres é de 40 anos.
Putrino, do hospital Monte Sinai, em Nova York, chegou a uma estatística parecida ao analisar os casos com que teve contato. A maioria são mulheres com idade média de 44 anos. Segundo o médico, elas eram saudáveis e em forma antes de contrair a covid-19.
O que são pacientes ‘recuperados’
Com o acúmulo de evidências a respeito da persistência da covid-19, alguns especialistas consideram que é preciso tomar cuidado ao definir uma pessoa como “curada” ou “recuperada”.
“Não há uma publicação oficial que defina o critério de cura no Brasil. Considerar apenas a alta médica é insuficiente”, afirmou o infectologista Bruno Scarpellini à revista Veja. “Há relatos de recuperados que tiveram alteração de memória, dor de cabeça crônica, cansaço e diabetes. Será que podemos dizer que estão curados?”
Em meio à pandemia, decretada pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março, o governo Jair Bolsonaro procurou dar destaque à categoria dos “recuperados” da covid-19 nos boletins oficiais, como forma de contrapor o que via como excesso de notícias ruins.
A pasta diz que segue os critérios da OMS para classificar um paciente como recuperado. Um deles é que o paciente hospitalizado tenha dois resultados negativos em testes para o novo coronavírus com pelo menos um dia de intervalo.
Em relação a pacientes leves, que não desenvolvem sintomas, a OMS recomenda um prazo de 14 dias a partir da confirmação da infecção para considerar a pessoa como recuperada.
Os casos de pessoas “em acompanhamento” são, geralmente, de pacientes que tiveram quadros moderados ou graves da doença, receberam alta, mas voltam a procurar o atendimento médico por apresentarem sintomas que não permitem a retomada de sua vida normal. No entanto, muitos vão para casa e deixam de ser acompanhados.
“Da mesma forma, é possível que o número de mortos seja, indiretamente, muito maior do que o estimado”, disse ao portal UOL o infectologista Marcus Vinícius Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, em Manaus. “Muitos pacientes que se recuperaram da covid-19 e deixaram os hospitais podem morrer tempos depois por conta de complicações relacionadas à infecção. Essas mortes não serão contabilizadas nos números da pandemia, mesmo que estejam relacionadas.”
Limbo e apoio a quem tem covid persistente
Com o foco dos serviços de saúde e da mídia nos doentes de covid-19 em estado grave ou que fazem parte dos grupos de risco, muitas das pessoas acometidas de covid persistente sentem falta de apoio, reconhecimento e informações práticas. Muitos relatam incompreensão por parte de médicos ou familiares.
“Parece que ninguém entende. Não creio que as pessoas estão a par desse meio termo, em que você fica derrubado por semanas e nem morre nem apresenta um caso leve”, afirmou Chloe Kaplan, uma americana que trabalha na área da educação, à revista The Atlantic.
Diversas pessoas nessa situação nos EUA ou Europa têm procurado outras alternativas para chamar atenção e discutir seu problema. Grupos de apoio foram criados nos aplicativos de mensagens Slack e WhatsApp e também no Facebook. Um dos mais proeminentes grupos de discussão no Facebook para “long-haulers” da covid-19 conta com mais de 7.000 inscritos.
Na Espanha, foi fundada a associação nacional Covid Persistente. O grupo lançou uma campanha para que “o Ministério da Saúde e serviços de saúde das diferentes comunidades autônomas [da Espanha] coloquem em andamento um plano específico para pacientes com coronavírus persistente”.
No Reino Unido, uma campanha similar, a LongCovidSOS, pede mudanças em políticas públicas que “continuamente ignoram as necessidades daqueles com sintomas de longo prazo”.