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Uma mulher sem fronteiras

A contribuição de Ana Maria Medeiros da Fonseca, ao combate à pobreza e desigualdade social, extrapolou as fronteiras do Brasil e se fez presente em dezenas de países da América Latina e África, ao longo de toda a sua vida.

Mas ela também transpôs outras fronteiras. Em vez de focalizar sua atuação em uma única dimensão, como é comum, desenvolveu sua trajetória em vários campos: pesquisa acadêmica, gestão pública e consultoria internacional. Na maioria das vezes, fez isso simultaneamente, o que lhe conferiu um raro perfil.

Na condição de pesquisadora do Núcleo de Políticas Públicas (NEPP/UNICAMP), Ana Fonseca acompanhou a primeira experiência piloto de um programa de transferência de renda com condicionalidades, no Brasil, implantado na cidade em que viveu por mais de 30 anos: Campinas. Como integrante do NEPP, participou de diversas pesquisas sobre o combate à pobreza e a redução da desigualdade social no Brasil e na América Latina, muito antes de imaginar que seria protagonista – na gestão pública municipal e federal – das mais importantes iniciativas nessa área.

Ana colaborou com inúmeros governos de países da América Latina na implantação e aprimoramento de seus programas nacionais de transferência de renda com condicionalidades. Atuou, entre 2004 e 2006, como consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em frequentes e repetidas visitas in loco a países da região: Chile (2), Paraguai (4), Uruguai (3), República Dominicana (4), Peru (1), Costa Rica (1), Panamá (1) e El Salvador (1).

Nos anos 2007 a 2009, Ana Fonseca atuou como consultora da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), justamente no período em que a instituição passou a fazer inequívoca associação dos temas da segurança alimentar e combate à fome aos programas de transferência de renda condicionada. Foi protagonista dos processos de compartilhamento de experiências por meio de seminários e oficinas internacionais, antecedidos por diálogos in loco em vários países como Nicarágua, Bolívia, Cabo Verde, além de revisitar a longa lista de nações que conhecera por meio do PNUD (2004 a 2006).

Orgulhosa do seu Ceará e brasileiríssima, ela tinha na América Latina o seu chão e na África sua raiz. Costumava dizer que “conhecer novos povos era uma felicidade”. Escreveu, certa vez, num relatório de trabalho ao escritório do PNUD: “paradoxalmente, ao aprender sobre os países, aprendi muito sobre o Brasil. Foi como se eu o visse em perspectiva ou de uma perspectiva distinta”.

Mas foi a sua experiência no Brasil, como primeira coordenadora do Bolsa Família (BF) – o maior programa de transferência de renda com condicionalidades do planeta – que a credenciou como uma especialista internacional. A tarefa lhe foi delegada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2003, em virtude de sua experiência na coordenação do programa Renda Mínima da prefeitura de São Paulo, no início dos anos 2000.

Naquele período, em São Paulo, Ana Fonseca já era defensora da unificação das diversas políticas de transferências condicionadas em curso. “Já que os pobres são os mesmos, não?”, disse num depoimento em vídeo para o NEPP. Unificação que ela propôs também em nível federal em seu relatório como integrante da equipe do governo de transição (entre novembro/2002 e janeiro/2003).

Na experiência da coordenação do Renda Mínima da prefeitura de São Paulo, Ana já revelaria o tipo especial de gestora pública que iria se tornar. Capaz de sair do gabinete e ir acompanhar, de madrugada, as longas filas de milhares de paulistanos pobres para receber os cartões do programa; formular os ajustes necessários àquela política pública e, em seguida, produzir o paper “As filas”, uma pérola acadêmica sob o olhar da gestão pública. No texto, ela sintetizaria: “A fila é a inscrição em cada um da ausência de direitos.”

Ana teve papel de destaque durante a pactuação federativa indispensável à implantação do Bolsa Família, cujo objetivo era discutir as contrapartidas dos estados e prefeituras ao programa federal: complemento adicional do valor do benefício e/ou programas complementares. Essa pactuação foi pré-condição essencial para um programa que precisava caminhar pela trilha de um Cadastro Único das populações potencialmente beneficiárias, cuja gestão só seria consistente se compartilhada com todos os entes federativos. Por orientação do presidente Lula, o próprio lançamento do BF (2003) chegou a ser adiado para que só ocorresse após um intenso esforço nessa direção.

O princípio da busca ativa – para o qual é competência do Estado encontrar e cadastrar as populações alvo – norteou o desenvolvimento dessa poderosa ferramenta para a implantação, não somente do BF, mas de inúmeros programas sociais dos diversos níveis de governo. Assentado nos milhares de Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), o Cadastro Único tornou-se a porta de acesso a todo o sistema de proteção social existente.

Sob o comando de Ana Fonseca, o cumprimento das condicionalidades do BF jamais constituiu um motivo burocrático para o desligamento de famílias que se pretendia beneficiar. A orientação do programa, ao contrário, sempre incentivou os gestores locais a realizarem esforços para compreender e apoiar aquelas famílias que, pela própria condição de pobreza ou extrema pobreza, temporariamente não conseguiam cumprir as contrapartidas exigidas.

À época do Plano Brasil Sem Miséria (2011), após um período como consultora internacional, Ana retorna ao governo federal, a convite da presidenta Dilma Roussef, e reitera o princípio da busca ativa: a proatividade dos gestores governamentais na localização e cadastramento das populações ainda invisíveis aos olhos do Estado. Princípio essencial para alcançar aquelas famílias que ainda não eram atendidas pelo BF.

Todas as equipes de profissionais que ela coordenou são unânimes no reconhecimento de seu perfil agregador, tanto pelo seu inteligente bom humor quanto pelo elevado engajamento na defesa do combate à pobreza e pela redução da desigualdade social, que garantiram o enorme sucesso das políticas públicas que ela comandou como gestora.

Saiba o que dizem sobre Ana

Infância, Juventude e Participação política

O interesse da pesquisadora do NEPP por uma sociedade menos desigual e socialmente mais justa, teve início muito tempo antes. O contato com a pobreza, ainda na infância, marcou a sua vida desde muito cedo e influiu, sem dúvida, nas suas escolhas futuras.

Nordestina apaixonada, Ana Fonseca foi a mais velha dos sete filhos e filhas de um casal católico. Nasceu em Fortaleza (Ceará, 1950), quando os pais dispunham de recursos que perderiam logo  depois, o que levou a família, durante um tempo, a viver em uma casa sem água corrente, nem energia elétrica.

As pistas desse passado vêm das palavras dela própria, no artigo “Os Filhos e Filhas da Terra Contam”: “(…) As marcas que ficaram em minha memória são como uma casamata de onde ainda hoje recolho forças para enfrentar os preconceitos de quem não tem noção da história (…) O tempo da seca, da falta d’água e da fome estava por todos os lados (…) Naqueles anos, a energia elétrica era um serviço precário. Em nossas casas estavam as lamparinas, os lampiões e as velas.”

A vivência da pobreza, no entanto, nunca foi motivo de lamento, mas de solidariedade. No mesmo artigo, ela relembra: “(…) a seca tangia para Fortaleza os moradores sem esperança e sem “o de comer” para a família. Os retirantes demoravam a chegar e quando apareciam, com acanhamento, em nossas portas, nós dávamos farinha, feijão e alguma rapadura. Aprendemos, então, a expressão ‘Deus lhe Pague’ (…) .

Ana sempre reconheceu a importância da educação e da leitura, hábito que adotou desde muito cedo, por meio dos livros emprestados junto à biblioteca da igreja frequentada por sua família. Da alfabetização ao ensino fundamental, frequentou somente escolas públicas, tendo sido admitida por concurso em uma excelente instituição de ensino do Ceará, à época, o Colégio Justiniano de Serpa.

Esse Colégio lhe deu acesso a uma convivência próxima com pessoas de diferentes classes sociais, a um significativo alargamento de seu repertório cultural, à inserção em novas redes sociais e a uma reflexão política que alterou os rumos de sua vida.

Nesse convívio teve acesso a gêneros musicais e literários que desconhecia e, principalmente, a um pensamento político crítico, no movimento secundarista. Essa experiência a levou à militância clandestina numa organização política de esquerda – a Ação Popular (AP) – num contexto em que o Brasil vivia sob uma ditadura militar.

Decidida a atuar em fábricas e na zona rural, mudou-se para Recife. Lá, aos 19 anos, foi presa e levada para o DOPS – Delegacia de Ordem Política e Social – onde sofreu torturas durante 45 dias até ser transferida para a Colônia Penal Bom Pastor. Foi condenada a 5 anos de prisão, depois reduzida para 2 anos, após recurso ao Supremo Tribunal Federal.

Ana Fonseca saiu da prisão aos 21 anos e retornou à Fortaleza, onde trabalhou na Casa Parente, loja de variedades, depois como secretária num curso preparatório para o Colégio Militar. Mas já estava decidida a migrar em busca da universidade.

Após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, ingressou no curso de graduação em História, da UNICAMP, instituição na qual permaneceria vinculada por toda a vida. Ali concluiu sua graduação e o mestrado em História (1984).  Em 1998, concluiu o doutorado em História Social, na  Universidade de São Paulo.  Esses estudos, a dissertação “Das raças à família”, analisando o pensamento social brasileiro relativo a essas problemáticas, e a tese “Família e Política de Renda Mínima”, assim como as pesquisas realizadas na Unicamp, tiveram fundamental importância na sua formação e tiveram efeitos na gestão, pois lhe ofereceram elementos para a formulação e implantação dos programas nos quais trabalhou.

Logo ao chegar em Campinas, Ana iniciou sua  participação no movimento estudantil, no período da reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE). Participou do congresso de reabertura da entidade, em Salvador (1979). Na mesma época, integrou o Coletivo Feminista de Campinas, no qual permaneceu de 1977 até 1984. As reflexões que desenvolveu neste período foram importantes para sua recusa do “planejamento familiar” como condicionalidade para as beneficiárias do Bolsa Família, muito mais tarde.

Em 1986, encontrou o amor de sua vida – Adriana Piscitelli, também pesquisadora da UNICAMP – com quem viveu por mais de três décadas, até seu falecimento.

Ana tornou-se paulista, por adoção, e corintiana devotada . Circulando pelo mundo, incorporou literatura, música e a paixão pelo Barça.  Colecionou amigos e afetos por onde passou, encantando com seu humor e cantando músicas das quais poucos se lembravam, especialmente os sambas tradicionais, mas também tangos e “saetas”.

Nas palavras dela mesma, gravadas em vídeo, em 2011, um resumo de sua percepção sobre a própria trajetória: “A vida tem me aberto as portas e o coração para eu aprender muitas coisas. Fazer do Brasil um país sem miséria? É o sonho de qualquer brasileiro. É algo que não tem a ver com colorações políticas, partidárias. É um sonho que realiza um dos objetivos da nossa Constituição (…) O Brasil sem Miséria é um plano, ambicioso, generoso, e eu tenho muita sorte na vida de estar participando desse projeto de Brasil.”

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