O QUE JÁ HÁ DE PRIVADO NO SUS. E QUAIS AÇÕES REFORÇAM A TENDÊNCIA

Reação nas redes sociais contra privatização do sistema público de saúde forçou Bolsonaro a revogar decreto sobre atenção básica. Participação privada acontece desde os anos 1990 e vem sendo aprofundada pelo governo
A reação negativa nas redes sociais a um decreto publicado na terça-feira (27) que previa a realização de estudos sobre possíveis parcerias com a iniciativa privada para construir, modernizar e operar Unidades Básicas de Saúde pelo país fez o presidente Jair Bolsonaro revogá-lo no dia seguinte.
Encarada como uma tentativa do governo federal de privatizar a atenção primária, com eventual cobrança por serviços que hoje são gratuitos, a medida gerou uma campanha espontânea na internet em defesa do SUS (Sistema Único de Saúde).
98,5%
das mensagens sobre o decreto no Twitter foram desfavoráveis ao governo, segundo levantamento da consultoria Arquimedes com 150 mil postagens
Também nas redes sociais, Bolsonaro negou que houvesse uma privatização do SUS em curso e afirmou que o decreto visava buscar recursos para completar obras inacabadas. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que assinou o decreto com Bolsonaro, também afirmou que o texto foi mal-interpretado e que falar em privatizar o sistema público de saúde seria uma “insanidade”.
Em entrevista ao canal de televisão CNN Brasil, a secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia, Martha Seillier, disse que a ideia era “usar as melhores práticas de atração de investimentos privados para prestar serviços melhores a nossa população”.
A participação privada nos serviços públicos de saúde não é novidade no país e acontece desde a década de 1990 por meio de diferentes modelos, como parcerias e isenção de impostos. O processo, segundo alguns pesquisadores, vem sendo acelerado e aprofundado no governo Bolsonaro.
Essa participação privada, porém, não implica na cobrança da população pelos serviços. Muda, na verdade, o modelo de gestão, de contratação de profissionais e a maneira como o poder público gasta dinheiro na área.
A iniciativa privada na saúde
A execução de serviços do SUS por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado é prevista na Constituição de 1988. Ela diz que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, mediante contrato de direito público ou convênio”.
No final dos anos 1990, foram criadas as OSs (organizações sociais), instituições privadas — geridas, portanto, pelas normas do direito privado — e sem fins lucrativos. Os governos estaduais e municipais ficaram liberados para realizar parcerias com essas organizações para a gestão de serviços públicos de saúde. Essas entidades recebem equipamentos e recursos públicos, e também ganham autonomia para administrar as unidades. As organizações podem, por exemplo, contratar funcionários sem concurso público e comprar sem licitações.
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Também desde os anos 1990, a legislação permite que hospitais filantrópicos, habilitados como hospitais de excelência, fiquem isentos de pagamentos de impostos e contribuições sociais se aplicarem esses recursos em projetos do SUS.
Outra forma de gestão privada na saúde são as PPP (Parceria Público-Privada), instituídas nacionalmente em 2004, e voltadas para investimentos de alto custo. A primeira PPP na área teve início na Bahia, em 2010, para a gestão do Hospital do Subúrbio, em Salvador. Uma concessionária ficou responsável pela gestão administrativa e pelo atendimento médico no local.
Ao defender o decreto assinado por Bolsonaro, Seillier citou o exemplo do Hospital do Subúrbio, que já foi premiado pela ONU (Organização das Nações Unidas), como exemplo bem-sucedido de parceria privada na saúde. Ela lembrou ainda de 40 Unidades Básicas de Saúde em Belo Horizonte que adotaram o modelo, além do Hospital Regional de São José dos Campos (SP).
O caminho para privatizações
Em artigo publicado em setembro nos Cadernos de Saúde Pública, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), as pesquisadoras Marcia Valeria Guimarães Cardoso Morosini, Angelica Ferreira Fonseca e Tatiana Wargas de Faria Baptista apontam três iniciativas do governo Bolsonaro tomadas desde 2019 no sentido de acelerar a participação da iniciativa privada na atenção básica.
Para as autoras, essas três medidas estabelecem uma reconfiguração do SUS, dando subsídio para sua privatização. Elas se diferenciam de iniciativas anteriores por deixarem de atingir apenas a gestão do trabalho e migrarem para a área da assistência. Conhecida como a porta de entrada do SUS, a atenção básica, também chamada de atenção primária à saúde, é um atendimento inicial que acaba funcionando como um filtro que organiza o fluxo de serviços nas redes de saúde pública.
As iniciativas de Bolsonaro
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Institui repasse de recursos federais aos serviços de saúde considerando o número de pessoas atendidas e o desempenho obtido (e não mais por base populacional). Segundo as autoras, isso implica menos recursos transferidos para a execução dos serviços e foca no indivíduo e não mais na perspectiva comunitária e na atenção territorializada, que marcava a atenção primária. A mudança na alocação de recursos enfraquece os princípios do SUS abrindo espaço para que agentes privados possam participar dos serviços.
AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE
É um serviço social autônomo que permite que entidades privadas assumam a gestão da atenção básica. Foi criada como pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos para executar o Programa Médicos pelo Brasil (que substituiu os Mais Médicos). Com ela, criou-se a oportunidade de estabelecimento de contratos, acordos e convênios com entidades nacionais e internacionais, públicas ou privadas — isso daria ao setor privado, segundo as autoras, acesso e gestão de fonte estável e volumosa de financiamento.
CARTEIRA DE SERVIÇOS
A iniciativa se apresenta como um documento de referência aos gestores, com uma lista de serviços a serem prestados. Ela propõe reorganizar o processo de trabalho, com novos formatos de equipe centrados em médicos e enfermeiros. O papel dos agentes comunitários de saúde, por exemplo, é apagado da proposta, o que pode enfraquecer o enfoque comunitário. A lista de serviços, segundo as autoras, também contribui para precificá-los, dispositivo necessário para a contratação de entes privados.
Ao Nexo, Angélica Fonseca, professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e uma das autoras do estudo, disse que cada um desses três elementos cria “as melhores condições para que as práticas de saúde possam ser tomadas como objeto de negociação e de lucro”.
Segundo ela, o tema da privatização sempre rondou o SUS, devido à competição do setor privado por fundos públicos. A presidente Dilma Rousseff e os governos do PT, em sua opinião, tinham compromisso com a expansão do sistema de saúde com bases públicas, mas deixaram portas abertas à privatização da saúde ao adotarem uma linha de “conciliação de interesses”.
Com os governos Temer e Bolsonaro, para ela, foram deixadas de lado concepções de fortalecimento da participação popular, da saúde enquanto processo social e do SUS enquanto indutor da redução das desigualdades sociais. Esses conceitos foram substituídos, de acordo com a professora, por uma ideia de assistência onde a “clínica é restrita a procedimentos” médicos. “Isso abre portas para formas de remuneração, de contratação mais compatíveis com o que o setor privado pratica. A privatização leva a uma mudança na forma de conceber, organizar e propor ações de saúde”, afirmou.
As mudanças feitas pelo governo Bolsonaro teriam como objetivo, em sua concepção, criar segurança jurídica para propostas de redução da participação e da responsabilidade do Estado em assegurar direitos sociais, nos quais se inclui a saúde.
Segundo ela, o decreto que colocava as Unidades Básicas de Saúde na mira do programa de parcerias privadas pode ter surpreendido brasileiros porque o país vive um processo de valorização maior do SUS por conta da pandemia do novo coronavírus. “Para quem está acompanhando, o caminho da privatização já tinha sido dado anteriormente”, afirmou.