POR QUE A VACINAÇÃO NA PANDEMIA VAI ALÉM DE UMA ESCOLHA INDIVIDUAL

Estêvão Bertoni

Bolsonaro volta a dizer que imunização contra covid não será imposta. Prefeito da maior cidade do país, Bruno Covas afirma que vai investir em campanha, mas sem obrigatoriedade. Pesquisadores ressaltam que transmissão só será bloqueada com ação em massa

O presidente Jair Bolsonaro afirmou na segunda-feira (19) que uma possível vacina contra o novo coronavírus será oferecida à população de forma gratuita assim que aprovada, mas que ela não será obrigatória. Sua fala foi uma resposta ao governador de São Paulo, João Doria, que defendeu a obrigatoriedade do imunizante. Adversários políticos, os dois têm politizado questões relacionadas à vacinação.

Doria tenta sair na frente na corrida por uma vacina com a Coronavac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, ligado ao governo paulista. Inicialmente, havia prometido o início da imunização no estado em dezembro de 2020, mas recuou e disse não ser possível precisar uma data. Na sexta-feira (16), defendeu a obrigatoriedade da vacinação.

“Em São Paulo será obrigatório [se vacinar], exceto quem tenha orientação médica e atestado que não pode tomar. E adotaremos medidas legais se houver contrariedade nesse sentido”

João Doria

governador de São Paulo, em entrevista na sexta-feira (16)

Já o governo Bolsonaro aposta em outros imunizantes, como o da Universidade de Oxford e do laboratório britânico AstraZeneca — que deverá ser produzido pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), entidade ligada ao governo federal. O cronograma do Ministério da Saúde previa o início da vacinação em abril, e originalmente não citou a vacina da Sinovac.

Só na terça-feira (20), após pressão dos secretários estaduais de Saúde, o governo federal anunciou que compraria a Coronavac para incluí-la no Programa Nacional de Imunizações. Na manhã de quarta-feira (21), porém, Bolsonaro escreveu em sua conta no Facebook que a vacina “não será comprada”, ao responder a um apoiador que acusava a China de ser “uma ditadura” e pedia para que o imunizante não fosse comprado.

O presidente já havia afirmado no final de agosto que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, o que contradiz a legislação brasileira, que permite ao governo definir imunizantes como obrigatórios. Ele voltou a defender a não obrigatoriedade na segunda-feira (19), após a fala de Doria, e chamou o governador de “médico do Brasil”.

“O programa nacional de vacinação, incluindo as vacinas obrigatórias, é de 1975. A lei atual incluiu a questão de pandemia lá, mas é bem clara: quem define isso é o Ministério da Saúde, e o meu ministro da Saúde já disse que não será obrigatória essa vacina e ponto final”

Jair Bolsonaro

presidente da República, em evento na segunda-feira (19)

A obrigatoriedade também foi criticada pelo candidato a prefeito de São Paulo Celso Russomanno, que tem apoio de Bolsonaro, e pelo filho do presidente Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo PSL paulista. Nas redes sociais, Eduardo escreveu que “não é Bolsonaro que nega a ciência, são os ditadores que negam a liberdade”. Grupos negacionistas e de extrema direita afirmam que o Estado não pode “atropelar direitos individuais” ao impor a obrigatoriedade da vacina.

Candidato à reeleição para a prefeitura de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) também afirmou na terça-feira (20) que a obrigatoriedade não será necessária na capital paulista porque ele irá investir em campanhas de conscientização e conta com a colaboração da população. O prefeito tenta se descolar da imagem de Doria, que abandonou a prefeitura em 2018, após 15 meses no cargo, para concorrer ao governo do estado, o que afetou sua popularidade na capital paulista.

O que diz a lei brasileira

A lei nº 6.259, de 1975, citada por Bolsonaro, criou o Programa Nacional de Imunizações e determina que o Ministério da Saúde tem como papel definir vacinas de caráter obrigatório. Atualmente, vacinas como a BCG (que previne a tuberculose), febre amarela e tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) são obrigatórias.

No caso específico da pandemia do novo coronavírus, a lei nº 13.979, de fevereiro de 2020, assinada pelo próprio Bolsonaro e pelos então ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça), diz que para enfrentar uma “emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” o governo brasileiro poderá determinar como compulsória a vacinação. A decisão caberia, portanto, ao Ministério da Saúde.

Na legislação brasileira, existe obrigação expressa de vacinação para crianças e adolescentes, com previsão de multa em caso de descumprimento, o que não acontece, por exemplo, com os adultos.

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) determina como “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Pode haver multa de 3 a 20 salários mínimos (de R$ 3.135 a R$ 20.900) caso a determinação não seja cumprida, mas essas multas raramente são aplicadas.

Deixar de vacinar uma criança pode ainda levar os pais a serem acusados de negligência (o que em último caso pode levar à perda de guarda da criança) e, caso a ausência de vacinação leve à morte, eles podem responder por homicídio doloso (quando se tem intenção ou se assume o risco).

Responsabilidade coletiva

Para a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), a vacinação não é uma questão de liberdades individuais. “A vacina não é uma ferramenta individual: eu me vacino, eu me protejo. É uma responsabilidade coletiva”, disse ao Nexo.

Segundo ela, numa população em que 95% das pessoas foram vacinadas, uma parcela de 5% pode não conquistar imunidade, pois nenhuma vacina é 100% eficaz e existe a chance de pessoas se vacinarem e não ficarem protegidas. “Isso vai variar de menos de 1% a 5%, na pior das hipóteses”, afirma. Mesmo assim, mesmo os desprotegidos estariam seguros, por não encontrar quem passe a doença para elas. Uma ampla cobertura geraria, portanto, uma imunidade coletiva. Por isso a importância de grande parte do público-alvo ser imunizado.

Em alguns casos, vacinar um grupo específico pode evitar que a doença se espalhe para os demais. O Japão, por exemplo, segundo Ballalai, não vacinou os idosos para a gripe comum, mas todas as crianças e adolescentes, de zero a 19 anos. “Com isso, o país conseguiu reduzir a gripe em idosos mais do que vacinando eles, porque a criança transmite a influenza. O Brasil e o resto todo do mundo adotaram vacinar o grupo de risco, que são aqueles que mais morrem, porque têm uma questão de números [limitados] de doses disponíveis”, afirmou.

Apesar de haver uma obrigatoriedade para a vacinação no Brasil desde 1975 nos casos decididos pelo Ministério da Saúde, ela diz que na prática “ninguém sai correndo atrás de um adulto para ele se vacinar”. “A última vez que isso aconteceu foi com a vacina da varíola que gerou uma revolta [em 1904]. De lá para cá a gente conseguiu conscientizar melhor as pessoas, as vacinas ficaram mais seguras. Essa medida [de obrigar a se vacinar] seria fora do comum”, disse.

Discutir a obrigação, para ela, só piora a confiança da população. “Quanto mais eu falo nisso, mais parece que [a vacina] é uma coisa perigosa. Não existe essa discussão para nenhuma outra vacina. Por que com a covid? As vacinas não vão ser licenciadas se não se mostrarem seguras. Só aumenta a dúvida e a insegurança da população que está sendo atacada com tanta desinformação”, afirmou.

Virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o pesquisador Flávio Guimarães da Fonseca ressalta que não houve nenhuma vacinação na história recente do país que tenha sido obrigatória, mas lembra que a pandemia do novo coronavírus é uma crise sem precedentes.

“Talvez a gente não tenha vivido nos últimos 100 anos nada parecido com o que está vivendo agora. E a gente sabe que, para controlar essa pandemia, quando a vacina estiver disponível, a única alternativa, considerando a característica do vírus em ser muito infeccioso, em se disseminar com rapidez, em não garantir que a pessoa infectada seja imune de forma duradoura contra ele, a médio e longo prazo será a vacinação. Quer dizer que tem que transformar numa obrigatoriedade? Minha resposta é técnica: a única forma de controlar o vírus é uma vacinação em massa”, afirmou ao Nexo.

Com a vacina, um instrumento de bloqueio de transmissão do vírus na população, é possível erradicar uma doença, segundo o pesquisador. “É o que vem sendo tentado com a poliomielite, por exemplo. Graças à vacinação global da pólio, em 50 anos ela deixou de ser uma doença prevalente no mundo inteiro para ser uma doença com 300, 400 casos em bolsões muito específicos de pobreza em países da África e da Ásia”, disse.

De acordo com o pesquisador, é preciso evitar esses bolsões de pessoas desprotegidas, porque são elas que continuam garantindo a circulação do vírus.

Como fazer a população se vacinar

Isabella Ballalai defende que a população tenha informações de qualidade sobre as vacinas para gerar confiança. “As pessoas precisam que se mostre que tem alguém cuidando da gente”, afirmou.

Essa confiança, por ora, existe. Uma pesquisa do Datafolha divulgada em 10 de outubro mostrou que 75% da população de quatro capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife) diz pretender se vacinar contra o novo coronavírus assim que houver uma vacina disponível. A maioria também é a favor da obrigatoriedade.

70%

da população de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife é favorável à obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19, segundo o Datafolha

Mas os questionamentos e informações falsas sobre as vacinas, como vem ocorrendo com a Coronavac, pode afastar as pessoas. Pesquisa da TV CNN Brasil divulgada na sexta-feira (16) apontou que 46% dos brasileiros disseram que não tomariam a “vacina da China” e 38% afirmaram não tomariam a “vacina da Rússia”.

Em sua coluna publicada no jornal Folha de S.Paulo, na terça-feira (20), o doutor em filosofia Pablo Ortellado defendeu que, caso o governo federal atue contra a vacinação, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal devem garantir que o país alcance uma imunidade coletiva. Ele defende medidas como a exigência de apresentação da caderneta de vacinação para a realização de matrículas em escolas públicas e a vacinação das famílias como garantir para acessar programas sociais como o Bolsa Família.

“Embora a saída para vencer o sentimento antivacina seja o convencimento do público, no curto prazo vamos precisar de instrumentos de coerção”, escreve Ortellado.

A médica Isabella Ballalai concorda com mecanismos que forcem a vacinação. “Recentemente, numa pesquisa publicada pela Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], uma das mães entrevistadas disse que era bom ter uma penalidade, porque assim ela ia vacinar. É igual usar o cinto de segurança: se eu não botar, eu vou ter multa. Então vou botar”, afirmou.

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