POR QUE O URUGUAI TEM TÃO POUCOS CASOS DE COVID-19

João Paulo Charleaux
Estabilidade política, investimento em saúde e compromisso com diretrizes científicas fazem do país sul-americano um exemplo de relativo êxito na gestão da pandemia
O Uruguai é um dos países menos afetados do mundo pela pandemia da covid-19. Até terça-feira (8), 1.679 pessoas tinham sido diagnosticadas com a doença no país, das quais apenas 45 morreram.
De acordo com dados da OMS (Organização da Saúde), nenhum outro país da América Latina tem números tão baixos. No mundo todo, apenas um grupo de 54 dos 188 países monitorados apresentam número de mortos menor que o do Uruguai – a maioria, micronações do Caribe e do meio do Oceano Índico.
O bom desempenho do país sul-americano é excepcional tanto no que diz respeito ao número absoluto de contaminados e mortos quanto no que diz respeito aos dados de incidência da pandemia por grupo de 1 milhão de habitantes.
A comparação com os vizinhos sul-americanos mostra o Uruguai com pouco mais de 483 casos por grupo de 1 milhão de habitantes, contra 3.152 por milhão no Paraguai, 10.593 por milhão na Argentina e 19.465 por milhão no Brasil.
A comparação com grupo de milhão serve para colocar em perspectiva o fato de o Uruguai ter apenas 3,4 milhões de habitantes ao todo, o que correspondente à população de estados brasileiros como o Rio Grande do Norte, Alagoas ou Mato Grosso. Ou seja: o baixo número de contaminados e mortos no Uruguai não se deve ao fato de a população ser pequena.
Menção da cúpula da OMS
Na segunda-feira (7), o diretor-geral da OMS, o etíope Tedros Adhanom, chamou atenção para o feito uruguaio: “Embora as Américas tenham sido a região mais afetada, o Uruguai registrou os números mais baixos de contaminação e morte pela covid-19 tantos em termos absolutos quanto percentuais.”
A América (do Norte, do Sul, Central e Caribe) lidera o ranking absoluto de casos de contaminação – foram mais de 14 milhões de registros até setembro de 2020 –, e também o ranking proporcional, com mais de 354 casos contabilizados por grupo de 1 milhão de habitantes. Nenhuma outra região do mundo foi tão atingida pela doença quanto a América.
O fato torna ainda mais notável a façanha uruguaia, que conseguiu destoar de todo o entorno no qual o pequeno país está inserido. “Isso não acontece por acaso. O Uruguai tem um dos mais robustos e resilientes sistemas de saúde da América Latina, com investimentos sustentáveis baseados em consensos políticos sobre a importância do investimento em saúde”.
Mesmo o Suriname, país menos populoso da América do Sul, com uma população de tão somente 586 mil pessoas, teve mais registros de mortes e contaminados que o Uruguai – foram 91 mortes no Suriname contra as 45 registradas no Uruguai.
A Guiana, segundo país menos populoso da região, teve 47 mortos entre 786 mil habitantes. O Paraguai, que tem o dobro da população do Uruguai, acumula quase dez vezes mais casos fatais que os uruguaios.
Em todas as comparações possíveis, seja por números absolutos ou relativos, o caso uruguaio destoa dos países ao redor, o que faz com que especialistas se debrucem sobre quais as estratégias empregadas pelo governo e pela população para lidar com a pandemia de forma relativamente exitosa.
Transições políticas suaves
O número um da OMS citou o “investimentos sustentáveis baseados em consensos políticos” como uma das chaves do sucesso uruguaio. Esses consensos ficaram visíveis na última transição de governo, em novembro de 2019.
O país, que era governado pela esquerda desde 2005, passou às mãos da direita em 2020. A transição foi marcada por gestos conciliatórios entre o ex-presidente Tabaré Vásquez, de esquerda, e o atual mandatário, Luis Lacalle Pou, de direita.
Nem mesmo a disputa acirrada e a vitória apertada de Lacalle Pou – que venceu por margem de 1% após uma recontagem cheia de expectativas – mancharam o processo. O novo presidente e seu concorrente, Daniel Martínez, trocaram elogios no fim da disputa, e uma equipe de transição foi montada para não interromper o funcionamento da máquina pública.
Lacalle Pou assumiu o governo do Uruguai em 1º de março de 2020. Quatorze dias depois da posse, o país registrava seus primeiros oito casos de contaminação.
Receita alternativa
Em vez de quarentenas obrigatórias e fechamento compulsório do comércio, o governo apostou numa estratégia de manter a economia operando enquanto dedicava todo o esforço em localizar os casos de pessoas infectadas e isolá-las do restante da população.
Eventos massivos foram proibidos, viagens sofreram restrições, escolas operam em sistema de rodízio de alunos e as medidas de distanciamento social e uso de máscaras são amplamente recomendadas. Todo esse receituário foi implementado de forma “bastante prematura”, de acordo com Sylvain Aldighieri,
responsável pela gestão da pandemia de covid-19 na Organização Pan-Americana da Saúde.
Além de garantir bons resultados sanitários, essa aposta se mostrou exitosa também no campo econômico. O tombo na economia local deve ser menor que o dos vizinhos. Enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) uruguaio está projetado para sofrer queda de pouco mais de 3%, o Brasil lida com previsão de queda de entre 4% e 5%, embora o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenha dito na quarta-feira (9), que “vai ser menos que isso”, pois “o país estão dando a volta por cima”.
A economia do país registrou crescimento sustentado nos últimos 17 anos. Os trabalhadores que perderam o emprego nessa fase da pandemia encontraram respaldo em políticas sociais consolidadas e a oposição ao presidente Lacalle Pou não adotou uma postura combativa em relação às iniciativas de saúde, que foram coordenadas por um comitê de médicos e outros cientistas nacionais.
O governo é aprovado por 80% da população e o índice de popularidade do presidente está em 59%. Apesar de bom, esse índice já foi melhor. Em março, ele era bem avaliado por 65% dos uruguaios. Em abril, esse índice caiu para 62% e em junho bateu 63%.
Ainda assim, todos esses índices registrados mostram o presidente com um índice de apoio muito superior ao obtido nas urnas, em março de 2019, quando ele recebeu o equivalente a 29% dos votos no primeiro turno e 49% no segundo turno da disputa.
Pilares bem assentados
O Banco Mundial chama atenção para “o sólido contrato social” que vigora no Uruguai, país que possui “baixos níveis de desigualdade e pobreza, além da quase ausência total da pobreza extrema”.
Em termos proporcionais, o país possui a maior classe média de toda a América Latina, com 60% de sua população reconhecida como parte desse extrato, o que se reflete num alto PIB per capita e em bom IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
A expectativa ao nascer, que em 1960 era de 67,7 anos, passou a ser de 77,7 anos em 2018. O gasto per capita em saúde era de US$ 687 no ano 2000, mas passou a ser de US$ 1.591 em 2017. Esse valor é maior que o de vizinhos como Argentina, que gasta em média US$ 1.324 por habitante com saúde, e o Brasil, que gasta US$ 928 por habitante com saúde.