A ABUNDÂNCIA QUE NÃO CHEGA À MESA DE TODOS

Desempenho do agronegócio é insuficiente para alimentar um país; é preciso políticas públicas

Num ano de imensos desafios para o combate à fome no mundo, o Nobel da Paz ser concedido ao Programa Mundial de Alimentos da ONU é salutar e um alerta para os retrocessos na garantia da segurança alimentar e nutricional. Em julho deste ano, a Oxfam Brasil revelou que a fome vem se agravando em diferentes países, incluindo o nosso.

Embora o acesso ao auxílio emergencial tenha tido o efeito esperado para garantir que as famílias brasileiras mais vulneráveis pudessem se alimentar e manter condições mínimas de vida na pandemia, bem como as necessárias medidas de distanciamento social, a fome e a insegurança alimentar ainda são desafios estruturais de um país tão desigual.

Os dados mais recentes do IBGE mostram que mais de dez  milhões de brasileiros estão passando fome, um aumento de 3 milhões de pessoas desde que saímos do Mapa da Fome da ONU em 2014. Se pensarmos que esses dados do IBGE revelam a realidade de 2018, não é difícil prever uma escalada do problema assim que medidas como o auxílio emergencial forem flexibilizadas ou extintas, e o país seguir imerso numa crise econômica aprofundada pelos impactos da pandemia de coronavírus. O desemprego e o aumento da pobreza e das desigualdades —  associados a uma agenda econômica que privilegia o Estado mínimo e a austeridade fiscal e desmonta a estrutura de políticas sociais —  inviabilizam a promoção do desenvolvimento. Nesse contexto, o Brasil pode se transformar num dos epicentros da fome no mundo.

Diante disso, os recordes de produção de alimentos são pouco relevantes para o combate à fome, assim como os discursos de autoridades sobre o poder do agronegócio. A desvalorização do real e o mercado se voltando para a exportação reduzem a oferta interna de alimentos e produtos, o que provoca o aumento de preços, como aconteceu com o arroz. É ofensivo justificar o aumento de preços dos alimentos porque parte da população recebe o auxílio emergencial. E é esse o mecanismo da desigualdade —  os mais pobres e vulneráveis arcam com os custos mais altos de crises econômicas e de agendas político-econômicas voltadas aos setores mais privilegiados.

A fome volta a ser um problema estrutural, que deve ser enfrentado com políticas de curto, médio e longo prazos, com a ampliação e articulação de investimentos sociais em políticas como saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional. Foi assim que saímos do Mapa da Fome da ONU em 2014, porque houve uma combinação entre políticas macroeconômicas de valorização do salário mínimo e geração de emprego e políticas de segurança alimentar e nutricional e de inclusão social aliadas a um programa eficiente de transferência de renda.

E como sustentar essa transformação? Um dos caminhos é a reforma tributária, na qual  devemos erradicar os mecanismos regressivos do nosso sistema tributário e ampliar receitas com, por exemplo, a taxação dos super-ricos e dos lucros e dividendos, e a cobrança de “taxas extraordinárias” para as grandes corporações que estão apresentando ganhos inesperados durante a pandemia. É preciso garantir as condições para a implementação de um programa de renda básica, que considere a experiência já existente e que seja sólido. As estratégias para o desenvolvimento devem ser para o conjunto da sociedade,  e não para poucos setores historicamente privilegiados.

A fome é a face mais perversa das desigualdades brasileiras —  e as desigualdades brasileiras são o lado mais perverso da falta de visão política de seus governantes.

Maite Gauto é  socióloga e gerente de programas, incidência e campanhas da Oxfam Brasil;  Katia Maia é  socióloga e diretora executiva da Oxfam Brasil

https://oglobo.globo.com/opiniao/a-abundancia-que-nao-chega-mesa-de-todos-24712934

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