O IMPOSTO PAGO (E NÃO PAGO) PELOS SUPER-RICOS NO BRASIL

Isabela Cruz 

Repatriação de R$ 48 bilhões por família paulista chama atenção para cobranças sobre heranças e doações. Economista e especialista em direito tributário falam sobre o cenário e as distorções do país

Integrantes de uma família em São Paulo repatriararam R$ 48 bilhões em doações de seu patriarca. Pelas regras estaduais, a operação geraria R$ 2 bilhões de imposto aos cofres públicos. Como não há lei federal regulando a questão, o caso está em disputa judicial.

O caso veio à tona na segunda quinzena de outubro e chamou atenção para as grandes fortunas brasileiras, assim como para o quanto os super-ricos pagam de imposto no país.

R$ 5,4 bilhões

é o impacto orçamentário negativo projetado pela Fazenda de São Paulo para os próximos cinco anos, se heranças e doações estrangeiras não puderem ser tributadas

Além do imposto sobre doações e heranças envolvendo os demais países, outro tema tributário que, apesar de ser de atribuição da União, nunca ganhou a atenção da maioria dos parlamentares é a tributação de grandes fortunas.

Propostas de aumento da alíquota de Imposto de Renda para os mais ricos também já foram consideradas por governos de esquerda e de direita — inclusive pela atual equipe econômica —, mas ainda não avançaram.

Nexo elenca abaixo alguns dos pontos que economistas e tributaristas costumam levantar quando o assunto é tributação dos super-ricos no Brasil.

As heranças e doações estrangeiras

Os herdeiros alegam que a cobrança pelos estados do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação) no caso de heranças e doações transnacionais não pode ser feita atualmente.

Pela Constituição, a instituição desse tipo de imposto, de caráter estadual, depende de regulação por uma prévia lei federal. O problema é que, passadas mais de três décadas da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional nunca editou a referida lei.

Diante da omissão do Congresso, estados passaram a fazer essas cobranças com base apenas nas suas próprias leis. E ações judiciais proliferaram em todo o país para contestarem a cobrança.

O julgamento no Supremo

Na sexta-feira (23), o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a questão. O caso, relatado pelo ministro Dias Toffoli, se refere a uma outra família, mas o que for decidido valerá como regra para legislações de outros estados também. O plenário virtual ficará aberto por uma semana. Nesse período, os ministros vão dando seus votos.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, a procuradoria de São Paulo diz no processo que a controvérsia sobre a possibilidade da tributação estadual sobre doações e heranças transnacionais tem sido usada por famílias ricas para evitar o pagamento de impostos.

De acordo com os procuradores, para não pagar o tributo sobre heranças e doações, famílias mandam o dinheiro para o exterior, como se fossem integralizar o capital de uma empresa ou fundação. Depois, repatriam e redistribuem a quantia entre a família, por meio de cotas dessa empresa. Na operação, recorrem à Justiça para não pagar o referido imposto (ITCMD), alegando que as regras estaduais não podem determinar a incidência do tributo sobre bens originários do exterior.

Até a noite do primeiro dia de julgamento, Toffoli e Edson Fachin tinham sido os únicos a votar. Toffoli defendeu que a tributação estadual, daqui para frente, não pode mais ocorrer, até que a União regule o tema. Fachin concordou.

As alíquotas do Imposto de Renda

O Imposto de Renda é cobrado de forma progressiva. Isto é, quanto maior a renda do contribuinte, maior será o percentual de tributação. No Brasil, além da isenção, são mais quatro faixas de cobrança.

A faixa mais alta abarca todos os contribuintes que ganham a partir de R$ 4.664,68. Isso significa que uma renda de R$ 5 mil por mês será tributada na mesma proporção que uma de R$ 150 mil, por exemplo.

27,5%

é a maior alíquota de Imposto de Renda no Brasil

No exterior, é frequente que a maior alíquota de tributação sobre a renda seja bem mais alta.

37%

era a maior alíquota de Imposto de Renda nos Estados Unidos em 2019

48%

era a maior alíquota de Imposto de Renda em Portugal em 2019

As isenções

Outro aspecto da estrutura de tributação da renda no Brasil é a concentração das isenções tributárias entre os mais ricos. São eles que têm mais rendimentos considerados não tributáveis na hora da declaração do Imposto de Renda, como lucros, dividendos, rendimentos de donos de microempresas, doações e heranças e aplicações como letras de câmbio.

Segundo dados do portal G1, em 2018, quase metade do total de isenções do Imposto de Renda ficou concentrada nas faixas de renda mais altas, com rendimentos acima de 60 salários mínimos.

70%

é o percentual dos rendimentos que não é tributado, na faixa mais alta de renda da população

Nas faixas intermediárias de renda, esse percentual não chega a 30% dos rendimentos totais.

Com isso, quando são contabilizados todos os rendimentos declarados ao Fisco, as alíquotas médias de Imposto de Renda crescem só até certo ponto (faixas entre 20 e 40 salários mínimos) e depois passam a cair. Nas últimas faixas, chegam a apenas 2%.

O padrão de queda nas faixas mais altas de renda se mantém mesmo se forem considerados os valores de Imposto de Renda retidos exclusivamente na fonte (como os de aplicações financeiras) — não submetidos à tributação na declaração anual de Imposto de Renda. O cálculo é de Sergio Gobetti, especialista em tributação, consultado na reportagem do G1.

A criação de pessoas jurídicas

Profissionais liberais com altos rendimentos mensais, como alguns médicos, advogados, publicitários, artistas da televisão e atletas, muitas vezes pagam Imposto de Renda como pessoas jurídicas. É o caso, por exemplo, do jogador de futebol Neymar Jr., que atualmente trava na Justiça uma disputa tributária com a União.

O mecanismo da ‘pejotização’ frequentemente permite que recolham um percentual menor de imposto do que se estivessem pagando o Imposto de Renda como pessoas físicas.

Isso acontece porque, no Brasil, diferentemente de muitos países, a distribuição de lucros e dividendos de uma empresa é isenta do Imposto de Renda. Sobre o lucro em si incidem, em regra, o Imposto de Renda para Pessoas Jurídicas e a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). Ainda assim, as alíquotas desses tributos são frequentemente menores do que as do Imposto de Renda de pessoas físicas, dadas as diferentes modalidades de recolhimento e as possibilidades de isenções.

Além disso, famílias com patrimônios mais expressivos criam pessoas jurídicas (as chamadas holdings) para administrarem seus bens. Com isso, todas as operações desse patrimônio (compras e vendas, contratos de aluguel etc) são tributadas nas alíquotas para pessoas jurídicas (normalmente inferiores às das pessoas físicas).

“Por exemplo, uma pessoa física paga 27,5% de Imposto de Renda sobre o que recebe de aluguel. Uma pessoa jurídica pode chegar a pagar, a depender do valor do aluguel, 11,33%”, disse o tributarista Gustavo Fossati ao Nexo.

O uso de offshores

Outro mecanismo que pode viabilizar a redução da tributação é a destinação de dinheiro para empresas registradas em países que cobram pouco ou nenhum imposto, as chamadas ‘offshore’.

Se declarada às autoridades, é uma opção lícita, que inclusive facilita a realização de investimentos no exterior. O problema ocorre apenas quando o investidor se vale da localização dessas empresas em países pouco rigorosos na regulamentação do setor financeiro e severos quanto às regras de sigilo bancário para realizar operações ilegais ou esconder dinheiro de origem irregular.

A tributação dos mais ricos sob análise

Nexo conversou com um economista e com um tributarista sobre como ricos são e podem vir a ser tributados em sua renda, no Brasil e no mundo.

  • Eduardo Fagnani é doutor em ciência econômica pela Unicamp e professor colaborador do Instituto de Economia da mesma universidade
  • Gustavo Fossati é doutor em direito tributário pela Universidade de Münster, na Alemanha, e professor da FGV Direito Rio

Os mais ricos do Brasil pagam menos impostos do que os mais ricos de outros países?

EDUARDO FAGNANI Sim. Metade da arrecadação brasileira vem do consumo. A participação da tributação de renda e patrimônio é cerca de 20%. A média da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] é de 35%. Nos Estados Unidos, é de 50%. Na Dinamarca é 67%.

E quem ganha, por exemplo, R$ 300 mil por mês tem quase 70% da sua renda isenta de tributação [porque maior alíquota do Imposto de Renda atualmente é de 27,5%], da mesma forma de quem ganha R$ 30 mil. Isso está fora do princípio da equidade. Além disso, o país não tributa lucros e dividendos.

Também não se tributa patrimônio. Na média mundial, a alíquota máxima do imposto sobre herança é em torno de 30%. Aqui no Brasil a alíquota máxima é de 8%. A maior parte dos estados cobra 4%.

GUSTAVO FOSSATI Quando comparamos com países da tradição ocidental, sim. Primeiro porque a nossa alíquota mais alta para o Imposto de Renda [27,5%] é menor do que a de outros países. Deveria, portanto, haver mais progressividade, adicionais de alíquotas de Imposto de Renda. Na Alemanha, por exemplo, a alíquota da pessoa física também é progressiva, mas é mais agressiva, chega até 42%. Além disso, para quem recebe os chamados supersalários, há um adicional de 7%. Essa é a lógica correta da tributação da renda, ser de fato progressiva, e não proporcional.

Em segundo lugar, o rico recebe, por exemplo, uma remuneração mensal de R$ 100 mil, mas é a título de lucros ou dividendos da pessoa jurídica dele. A tributação recolhida por meio dessa pessoa jurídica é muito menor do que no caso de um assalariado que receba R$ 10 mil na carteira [com carteira assinada, declarando Imposto de Renda como pessoa física]. Em terceiro lugar, há uma série de isenções e deduções que beneficiam os mais ricos. De certa forma a classe média também. Por exemplo, a ampla dedutibilidade de despesas com saúde.

No âmbito do consumo [onde pobres e ricos pagam as mesmas alíquotas pelo mesmo produto], faltam mecanismos de restituição, que tem de ser efetiva e rápida. Porque o pobre não declara Imposto de Renda. Então ele tem de ser restituído por meio de mecanismos como auxílio emergencial, Bolsa Família, seguro-desemprego.

O que explica a resistência do poder público brasileiro em tributar mais os mais ricos?

EDUARDO FAGNANI É necessário tributar os super ricos para financiar a renda básica. Mas o 1% mais rico tem controle sobre o Congresso, sobre o poder econômico, sobre os grandes meios de comunicação. Então essa questão não entra no debate. Agora está entrando, mas com dificuldade.

Também existe a questão cultural, da percepção de que já se paga muito imposto. E é verdade: a carga tributária sobre o pobre e sobre a maior parte da classe média é alta. Mas porque a carga tributária sobre os super-ricos é residual. E tem todas essas campanhas, “impostômetro”… são várias formas de dizer que é necessário reduzir a carga tributária. Na verdade, temos que re-equilibrar a carga. Paga-se muito, mas é sobre o consumo. Se culturalmente isso ficasse claro, seria um avanço.

Além disso, o debate [da reforma tributária] está focado na questão da competitividade. Nos últimos 30 anos se formou um consenso de que o problema da tributação é que se tem muito tributo. Então a solução seria simplificar, especialmente o tributo sobre o consumo. E realmente isso é necessário. Muito imposto atrapalha a competitividade, é uma questão importante. Só que o principal problema do Brasil é a injustiça fiscal, eu não tenho a menor dúvida disso.

GUSTAVO FOSSATI Há muita resistência política em se instituir no Brasil um IGF [Imposto sobre Grandes Fortunas] ou um adicional de Imposto de Renda, como tem na Alemanha, ou mesmo em aumentar a alíquota máxima [do Imposto de Renda] de 27,5% para 35%, vamos supor. É uma resistência dos próprios deputados e senadores — salvo os de partidos mais de esquerda, que são ultrapopulistas, que vão sempre defender o povo etc. Porque vai doer no bolso deles e de seus eleitores. Ainda que seja reduzido o universo de eleitores afetados por um IGF, a força política desses eleitores é muito grande. Eles contratam escritórios de lobby. É um custo político tremendo.

Além disso, toda a sociedade já tem essa noção de que temos uma carga tributária final elevada em comparação com aquilo que o Estado nos devolve. O retorno é muito pouco e muito precário. Isso é mencionado até em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. É algo que gera uma resistência muito forte a qualquer aumento de carga tributária.

Quanto ao planejamento tributário essencialmente via pessoas jurídicas [profissionais liberais que atuam como pessoa jurídica e famílias que criam holdings], o Estado não pode terminar com a ‘pejotização’. Porque abrir ou não uma empresa é uma liberdade fundamental que o cidadão tem. Não envolve só o ganho tributário, tem a questão da proteção e da gestão patrimonial. Mas o Estado pode resolver isso de outras formas. Por exemplo, a Constituição Federal prevê o Imposto sobre Grandes Fortunas.

Num cenário em que o governo discute como financiar programas sociais, quais são as vias possíveis para que os mais ricos contribuam mais?

EDUARDO FAGNANI Proponho oito mudanças legislativas que têm o potencial de arrecadação de R$ 260 bilhões, 600 mil pessoas, 0,3% da população. Entre elas, acabar com a não tributação da distribuição de lucros e dividendos, criar nova tabela progressiva do Imposto de Renda (propomos mais quatro alíquotas, a maior de 45%, como na média da OCDE, para quem ganha mais de R$ 60 mil por mês, 0,1% da população).

Outra medida é o Imposto sobre Grandes Fortunas. O potencial de receita é de R$ 40 bilhões por ano. E “grandes fortunas” são patrimônios acima de R$ 10 milhões de reais. Segundo dados da receita, são apenas 59 mil pessoas que têm esse patrimônio.

Tributar os super-ricos é algo que países centrais fizeram no século passado, para enfrentar tanto a Grande Recessão em 1929 quanto a crise do pós-guerra. E foi algo feito por governo liberais. E, no Brasil, alterações em Imposto de Renda, instituição de Imposto sobre Grandes Fortunas, isso tudo se faz por lei complementar, não precisa nem de mudança constitucional.

GUSTAVO FOSSATI Programas de distribuição de renda salvam a vida de muita gente e geram um círculo virtuoso em torno desse espalhamento. Mas de fato exigem que se tire dinheiro de algum lugar. Uma das formas, sim, seria cobrar mais impostos dos riscos.

Eu vislumbro como uma alternativa mais viável a tributação sobre lucros e dividendos. Porque aumentar a alíquota do Imposto de Renda da pessoa física é muito antipático, sofre muita resistência. Criar o IGF também acho que não vai passar, o custo político é muito elevado.

Além disso, é preciso se acabar com uma série de benefícios fiscais que não se justificam mais. Também é urgente uma reforma administrativa estrutural, terminando com essa pouca vergonha dos supersalários do funcionalismo público. Salários muitos dos quais muito acima do teto constitucional. Isso também gera dinheiro em caixa.

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