Doutora em política social 

Entrevista ao jornal O POVO, setembro/2006

Ana Fonseca é a cearense que assumiu a difícil missão de unificar os programas sociais do governo Lula. Conseguiu, saboreia hoje os números expressivos do Bolsa-família, que ajudou a criar e consolidar, mas hoje está fora do governo

Érico Firmo

O número de famílias atendidas é superior a 11 milhões. A meta para o fim do ano foi alcançada com alguns meses de antecedência. Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou, na semana passada, que a redução da pobreza nos três primeiros anos de governo Lula foi a maior dos últimos anos. Duas pesquisas distintas, feitas pelos institutos de pesquisa Datafolha e Target, mostraram que seis a sete milhões de pessoas saíram da situação de pobreza e chegaram à classe média entre 2003 e 2005.

As políticas de transferência de renda se tornaram o principal sustentáculo da popularidade de seu governo e carro-chefe da campanha do atual presidente pela reeleição. Mesmo os adversários têm prometido manter os programas sociais, caso eleitos. A dúvida é: Até quando o Estado brasileiro terá capacidade de continuar a combater a pobreza por meio de transferências diretas de dinheiro à população?

Para a pesquisadora Ana Fonseca, especialista em programas de transferência de renda, os limites do Bolsa-Família serão determinados pela vontade política do próximo governo. Integrante da equipe que formulou as políticas sociais do governo, ainda na época da transição, e depois responsável por comandar a unificação dos programas sociais e a implantação do Bolsa-Família no primeiro momento, ela avalia as possibilidades e os caminhos a serem seguidos pelo programa daqui para a frente. E ressalta que a adoção de políticas do gênero no combate à pobreza é uma tendência não só do Brasil, mas um caminho que vem sendo trilhado em toda a América Latina.

O POVO – O Bolsa-Família é hoje o eixo central das políticas sociais do governo federal, e o principal pilar da propaganda do atual presidente à reeleição. Os demais candidatos também têm se comprometido com a manutenção, e até expansão do programa. Quais são os limites do alcance de das políticas de transferência de renda. Políticas assistenciais têm potencial para serem mantidas no longo prazo?

Ana Fonseca – A discussão a ser feita é o que é assistencial e o que não é assistencial. A Constituição diz – e nós não cumprimos – que todo cidadão tem direito a uma renda. É um ponto de partida. Na Europa, todas as reuniões da área social são no sentido de implantação de uma renda mínima a todos os países membros. É assim na França desde 1986. Para os países europeus, o direito a uma renda mínima é um direito de cidadania. Isso é porque eles viveram uma experiência de estado de bem-estar social que nós não vivemos. Nosso modelo foi basicamente o modelo de seguro social. Quem tem emprego no mercado formal contribui e tem direito. Quem estava fora disso, a pessoa que estava fora da cidadania, digamos assim, tinha direitos a coisas mínimas. Ao atendimento nas Santas Casas de Misericórdia, a hospitais de doentes mentais e ao programa de enfermidade crônica. Que se ampliou um pouco na década de 1970, com a aposentadoria rural, para quem trabalhou mas não contribuiu. Mas se ampliou muito pouco. Essa é a nossa experiência. Não é a experiência da França e de outros países, onde esses direitos existem. É por isso que as pessoas chamam de assistencialismo. Porque as pessoas não teriam direito àquilo, porque não fez por merecer, já que não contribuiu.

OP – Há possibilidade de continuidade de uma política de transferência de renda no longo prazo? E, indo além, eles são pensados para serem mantidos no longo prazo?

Ana Fonseca – Os programas não são para tirar a pessoa de uma emergência. Não é algo como um socorro em uma situação de enchente ou numa seca. Não é uma coisa temporária, nesse sentido. Se esse programa é pensado como instrumento para ampliar os níveis de escolaridade e reduzir a defasagem entre as séries, precisa de mais tempo.

OP – Mas, ainda que não seja como a solução para uma enchente, o programa não tem um caráter emergencial? Uma política imediata, para resolver a situação de quem passa fome?

Ana Fonseca – Supõe-se emergência como uma situação imediata. Teve uma enchente, uma inundação, caiu minha casa. Qualquer coisa que eu precise de uma cesta básica, de um colchão ou de um abrigo. Isso é uma emergência. Eu não vou ficar morando em um abrigo a vida inteira. Já em relação a esses programas (de transferência de renda), em geral, eles visam assegurar o exercício três direitos constitucionalmente garantidos. À educação, à saúde e o direito humano à alimentação. No campo do investimento em educação, inclusive com o cumprimento das metas do milênio, são precisos mais anos de escolaridade para que sejam alcançados esses objetivos. Tanto que o prazo que os governos nacionais estabelecem para fazer o recadastramento das famílias varia de dois a quatro anos. E dois a quatro anos não são como passar uma chuva.

OP – Quais são, então, os limites dessas políticas?

Ana Fonseca – Os limites são limites políticos, limites da legitimidade para fazê-los. Estão determinados pelas escolhas políticas que se fazem.

OP – Em um eventual segundo governo Lula, ou em um governo Geraldo Alckmin, ou qualquer que seja o eleito, é sustentável a continuidade da transferência de renda como centro da política social? E é sustentável a continuidade de sua expansão?

Ana Fonseca – Há uma expectativa não só interna, mas de todos os nossos vizinhos da América Latina, que tenha prosseguimento. Há muita cooperação entre países nesse campo. De transferências de tecnologia, de sistemas de pagamento, inclusive. E é factível (o prosseguimento do programa). Recurso para fazer o programa, tem. A questão são as prioridades do governo. O que se paga com o Bolsa-Família é muito menos que com outras contas. Juros, por exemplo.

OP – Qual o caminho do Bolsa-Família daqui para a frente? Qual o futuro do programa?

Ana Fonseca – O programa Bolsa-Família chegou no top, naquilo que estava estabelecido. Se bateu no teto, qual é a escolha agora que o governo vai fazer? Uma possibilidade é abrir o foco do atendimento, incorporando pessoas que hoje não estão consideradas aptas, pela idade ou pela condição física, a serem atendidas por alguns dos programas sociais. E incluir essas pessoas. Entrarão pessoas que não têm crianças, por exemplo? Ou o Brasil vai, ao contrário, fazer um esforço concentrado, transversal, intersetorial do ponto de vista dos ministérios, acordado com estados e municípios, em direção aos grupos familiares que hoje já estão dentro do Bolsa-Família. Isso significaria investir em programas e políticas que tenham como alvos principais os membros da família e o entorno dessas famílias, que já estão dentro do Bolsa-Família. Refiro-me a acesso a abastecimento de água tratada, saneamento, num processo de pactuação com estados e municípios. Essas são as escolhas no campo da proteção social. Do contrário, a proteção social, que é uma tarefa do Estado, vai ficar uma tarefa só das famílias. Tenho que proteger os membros de minha família de todas as situações, porque o Estado não se toma ao cargo. Como eu não estou no governo já faz algum tempo, eu não sei qual é a escolha.

OP – Qual o caminho para essa ampliação de foco de atendimento, apontada pela senhora como um caminho possível?

Ana Fonseca – Nós temos hoje no Brasil, segundo o IBGE, das 39,6 milhões de famílias urbanas, 14% delas que não são propriamente uma família, no sentido que a gente conhece. São pessoas sós. Ou jovens que podem morar sós, porque têm recursos, ou idosos, situações desse tipo. Como pensar nesses grupos dentro desse tipo de programa? Cumprida a meta de incorporação de famílias com crianças e adolescentes até 16 anos incompletos como critério de acesso, imagino que o Brasil vai alargar o foco. Por exemplo, incorporando pessoas que são pobres, mas que não estão na idade, por exemplo, de ter acesso ao benefício de prestação continuada Lei Orgânica da Assistência Social (BPC). Ou conceder benefício para pessoas portadoras de deficiência. Como é que vai alargar o foco, se é que o Brasil vai por aí.

OP – Entre os críticos da transferência de renda, há os que acreditam que seria mais efetivo o investimento na melhoria da qualidade da educação e na geração de emprego. Se as políticas de transferência não são uma ação emergencial, no sentido que a senhora colocou, por que elas são necessárias, ao invés de direcionar mais recursos para geração de trabalho e para formação educacional?

Ana Fonseca – Se tem que pensar por oposição. Ou isso ou aquilo. Ou invisto em infra-estrutura, em estradas, ou invisto em transferência de renda. E se pensa na transferência de renda exclusivamente como gasto. Aquilo ali é um investimento. Investimento em novas gerações. E um investimento em que muitos municípios pequenos têm retorno financeiro. Porque movimenta a economia, aumenta a arrecadação. Se ela (transferência de renda) deve ser estável e para sempre, eu não sei. Em alguns países, na Europa, que tem muitos beneficiários de transferência de renda, e que são pobres – inclusive porque tem agora gerações de imigrantes que não se integraram bem – esses programas estão durando muito. Mas as pessoas não ficam por uma vida ali dentro. E há a experiência limite, da qual o (Eduardo) Suplicy (senador do PT-SP) gosta de falar, que é o Alasca. Os dividendos dos royalties do petróleo vão para um grande fundo que é repartido igualmente entre os habitantes do Alasca. É uma modalidade mais extrema de distribuição de renda. Mas no Brasil, isso não é um direito, que a pessoa pode ir lá e reivindicar. Nesse caso, poderia ser duradouro. Mas como é um benefício condicionado, ele tem prazo.

OP – Hoje o Bolsa-Família é considerado um caso de sucesso. Quais os desafios do programa, no atual momento?

Ana Fonseca – Fazer a transferência de recursos para uma família não é algo difícil. Difícil é tomar uma família como um grupo, com muitos componentes, e ter políticas e programas que se dirijam aos membros dessas famílias. Tem pessoas naquele grupo familiar analfabetas. Tem pessoas que trabalham por conta própria. É possível ter acesso ao crédito. É possível programas e políticas complementares capazes de alavancar essas famílias? Esse é um desafio. A transversalidade entre políticas de transferência de renda – com educação, saúde e o direito humano à alimentação – com outras políticas e programas executados pelos municípios do Estado. É um desafio para o programa. Seja para construir rotas de saída no sentido do melhoramento das condições de vida da família, seja para inserir a família numa rede de condição efetiva de proteção social. Esse é um desafio para o programa. E um desafio para todos os programas de transferência de renda na América Latina.

OP – O Brasil não é um caso isolado na adoção de políticas dessa natureza.

Ana Fonseca – O México tem um programa anterior ao nosso, de 1997. A Colômbia tem um programa com 400 mil famílias, o que é muita família para a Colômbia. O Chile, que declara ter 225 mil famílias pobres, também tem um programa. O Paraguai também tem o seu programa. El Salvador também tem seu programa. A Nicarágua, o Panamá, a República Dominicana. O que eu observo para toda a América Latina e o Caribe é a centralidade de todos esses programas de transferência de renda nas estratégias de combate à pobreza, com algumas variações importantes. E boas.

OP – Por exemplo.

Ana Fonseca – O programa do México conseguiu ampliar o foco do programa. Em vez de focalizar só a família pobre, com criança e adolescente, ele alargou o zoom. Dentro do programa Oportunidades, como é chamado, eles têm um componente chamado “Jovens em plataforma de oportunidade”. Para incentivar que os jovens concluam o que eles chamam lá de educação média superior. Funciona como uma poupança. Quando o jovem conclui, ele tem uma bolsa equivalente a U$ 300, que é importante para lá. A República Dominicana tem um programa relacionado a educação e saúde, que se chama incentivo à freqüência escolar, e dentro tem um programa chamado “Comer Primeiro”. Eles não são conflitivos uma pessoa pode estar nos dois programas. Se ela não tiver crianças na faixa de idade escolar, ela fica só no comer primeiro. Que é um cartão que tem uma rede conveniada, onde a pessoa retira o equivalente a 550 pesos, para alimentação. Tem muitas variações em torno desses programas. Focos mais abertos ou mais fechados, muito dependente das realidades locais.

OP – A adoção de políticas de transferência de renda como um eixo central nas políticas sociais na América Latina é uma tendência que se inicia quando?

Ana Fonseca – Ela é muito marcada nos anos 90. Toda a América Latina e Caribe tiveram um modelo de proteção com base no emprego formal. Você tem um emprego, tem uma renda, contribui e tem direito a benefícios e serviços. No plano internacional, o que teve de particular o fim dos anos 90 foi que a crise econômica e os programas de ajuste estrutural geraram um aumento do desemprego. Mais gente perde posto de trabalho e menos gente entra no mercado de trabalho. Tem-se aí um agravamento das condições de pobreza. É nesse contexto que surgem duas coisas: as chamadas redes de proteção social e os programas de transferência de renda dirigidos às famílias com crianças e adolescentes. E as famílias são pensadas como um eixo das políticas de erradicação da pobreza e da indigência, com prioridade para as famílias com crianças e adolescentes. É nesse contexto que toda a América Latina e Caribe começam os programas de transferência de renda. Honduras, México, Peru, República Dominicana, Uruguai, Panamá recém começou, Costa Rica vai ser agora. São 14 estados nacionais com programas de transferência de renda.

OP – O Brasil esteve entre os primeiros ou veio a reboque da tendência?

Ana Fonseca – Depende de como olhar para o Brasil. Do ponto de vista dos municípios, o Brasil foi na frente. Eu diria que o governo federal do Brasil foi a reboque das iniciativas dos municípios. Porém, dos municípios corporativamente mais ricos. Em 18 de março de 1995, a Prefeitura de Campinas paga a primeira Renda Mínima. Teve Santos, Distrito Federal, Ribeirão Preto, Jundiaí. Teve Boa Vista (RR), no Norte do Brasil. O governo federal entrou três anos depois da primeira experiência. A lei 9.533, de outubro de 1998, que autorizava a repassar recursos financeiros aos municípios que não tenham recursos próprios para fazer isso, para programas de renda mínima associados à educação. Se olhar para o resto da América Latina, o México e Honduras tiveram programas desse tipo antes de nós. Se olhar para dentro do Brasil, os municípios do Brasil saíram na frente.

OP – Na atual campanha presidencial, apesar das promessas dos outros candidatos de manterem o programa, tem havido críticas, principalmente de Geraldo Alckmin (PSDB) e Cristovam Buarque (PDT), à forma como ele foi conduzido do governo Lula. O ex-ministro Cristovam Buarque tem dito que, além da expansão do programa, a mudança que houve foi para pior, com ausência de controle da freqüência escolar.

Ana Fonseca – Vou te dizer uma coisa com toda franqueza e talvez com dureza. Não é verdade que em governos anteriores ou nos estados houvesse melhor controle da freqüência escolar do que o governo tem hoje. Isso é uma mentira deslavada. Não tem base real de sustentação. Quando o programa foi unificado, foi dito desde o primeiro momento que o Bolsa-Família era um evolução dos programas sociais de renda. Não era uma novidade. E acho que é uma evolução muito positiva. É verdade que há experiências importantes anteriores. Mas o programa representa uma evolução. E muito melhorada. O Paulo Renato não fazia bem o controle da freqüência, nem o ministro Cristovam Buarque fez bem o controle da freqüência escolar.

OP – Como são viabilizadas as portas de saída de programas dessa natureza? Quando a família chega à fronteira, quando ela tem uma melhor condição de renda, em que ela está próxima de alcançar um patamar no qual ela está fora da faixa de beneficiários, como funciona a saída das famílias do programa?

Ana Fonseca – O cenário ideal seria que a porta de saída fosse por iniciativa própria. Que a pessoa não precisasse mais desse apoio. Esse seria o ideal. Porém, é importante que o Bolsa-Família funcione como uma entrada para uma rede de proteção social. O pior dos mundos seria sair do programa só porque já não tem as crianças na faixa de idade. O grande desafio desse programa, e dos programas na América Latina e no Caribe, é como atuar de forma intersetorial em relação aos componentes da família. E que faça com que, com acessão do benefício, ele não volte à situação anterior em que ele se encontrava. Esse é o desafio.

OP – O Fome Zero, num primeiro momento, e o Bolsa-Família, numa fase posterior, foram alvo de críticas da oposição, denúncias de fraude. O que fez com que, de forma relativamente rápida, o programa se tornasse o grande carro-chefe do governo e da campanha favorita para vencer já no 1º turno?

Ana Fonseca – Nenhum candidato quer ir na contramão do que acontece no Brasil e na contramão do que estão fazendo seus vizinhos no campo da estratégia do combate à pobreza. E seria desastroso para qualquer candidato dizer que vai acabar com um programa que atende 44 milhões de brasileiros. O que normalmente os governos fazem é aperfeiçoar as coisas que encontram. O programa no México sofreu aperfeiçoamentos, está indo bem, com boas avaliações externas. No Chile, é uma continuidade. Começa com o governo do presidente Ricardo Lagos, segue com a Bachellet. Ela fala em algumas mudanças, mas manterá o nome os fundamentos. Aqui, o governo do presidente Lula fez a unificação do Bolsa-Família. Acho que ninguém vai mexer com o programa no sentido de acabar com ele. Dirão que é preciso melhorar os mecanismos de fiscalização, aperfeiçoar. Sobre as críticas, eu acho que havia muita má vontade. Mas essas coisas fazem parte das paixões da política.

https://www20.opovo.com.br/app/opovo/paginasazuis/2006/09/24/noticiasjornalpaginasazuis,632996/doutora-em-politica-social.shtml

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