DEBATE

TRANSFERÊNCIA DE RENDA E SEGURANÇA ALIMENTAR

Francisco Menezes

Economista, pesquisador do Ibase e analista de políticas da ActionAid. Presidiu o CONSEA de 2004 a 2007.

Políticas de transferência de renda têm demonstrado significativa contribuição para a garantia de segurança alimentar no contingente de populações que vivenciam situações de pobreza monetária. Considerando que segurança alimenta e nutricional significa “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN (Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006) torna-se evidente a importância do acesso aos alimentos para que ela possa se realizar. Esse acesso se dará através da produção para autoconsumo ou através da capacidade aquisitiva desses alimentos, de forma permanente.

Com o Programa Bolsa Família confirmou-se a premissa do quanto a renda transferida contribui para uma maior capacidade de acesso aos alimentos por parte das famílias que recebem o benefício. São inúmeros os estudos realizados sobre o Programa que fortalecem esta premissa em três aspectos relevantes. O primeiro deles é que a maior parte do recurso transferido é destinado para a compra de alimentos. O segundo é o que indica que estas famílias passam a ter uma maior disponibilidade de calorias do que aquelas que, em condição social similar, não recebem o benefício. E, um terceiro, a de que famílias que recebem o benefício adquirem mais alimentos in natura ou minimamente processados, como carnes, ovos, peixe, produtos lácteos, arroz, feijão, hortaliças e frutas, ou seja, alimentos de melhor qualidade nutricional. Ainda que este último aspecto não seja a regra geral que vale sempre para o público do Bolsa Família, na medida que vários outros fatores também influenciam a decisão desses consumidores, como a comparação de preços, a ainda insuficiente educação alimentar e os efeitos da publicidade de produtos com questionável valor alimentício, que permanecem sem a devida regulamentação. Vale também citar que, por força da condicionalidade da saúde no programa, que obriga ao acompanhamento nutricional das crianças de famílias beneficiárias, observa-se nos dados divulgados pelo Sistema de Vigilância Nutricional (SISVAN=MS) uma tendência contínua de redução da desnutrição na faixa de idade de zero a cinco anos, o que parece ser mais uma confirmação do impacto do Programa sobre a segurança alimentar e nutricional dessas famílias.

A comprovação do impacto positivo do Programa Bolsa Família sobre a segurança alimentar e nutricional de seus beneficiários contribui também para a correção de uma interpretação recorrente e equivocada de que a segurança alimentar se efetiva apenas através da produção de alimentos. De nosso país vieram enormes contribuições para uma compreensão conceitual muito mais abrangente e de natureza intersetorial sobre a segurança alimentar e nutricional. Porém continuamos a assistir manifestações enviesadas, vindas dos setores mais retrógrados, que ressaltam a modernidade do agronegócio, que o agro é pop e que ele resolverá todos os nossos problemas no campo da alimentação, desde a exportação e consequente arrecadação de divisas, até o suprimento de alimentos para os brasileiros. Mas também aparece entre setores progressistas que batem somente na tecla da produção da agricultura familiar e camponesa, cuja importância precisa ser sempre afirmada, mas que esquecem do outro lado, de uma imensa população, nas cidades e nos campos, dependente da renda que consegue auferir em diferentes atividades em que esta gente está empenhada e que na ausência ou insuficiência dessa renda, caso não conte com um programa como o Bolsa Família, entrará nas estatísticas da fome.

O momento atual, também pelas razões aqui apresentadas, exige especial atenção. Todas as evidências já indicavam que o país, depois de cumprir uma trajetória extremamente exitosa de redução da pobreza e da fome, voltou a registrar um crescimento acelerado dessas duas ocorrências. Se o informativo de rendimentos, tornado público anualmente pelo IBGE a partir dos dados da PNAD-Contínua, já atestava essa reversão de tendências em relação à pobreza e extrema pobreza, a recente divulgação dos resultados da pesquisa relativa à segurança/insegurança alimentar, realizada junto com a POF/IBGE em 2017/18, mostrou o acentuado crescimento das chamadas insegurança alimentar moderada e grave. Juntas atingiram 12,7% de nossa população, sendo que a insegurança grave, que indica a ocorrência em um domicílio de redução quantitativa dos alimentos atingindo inclusive as crianças e adolescentes, alcançou 10,3 milhões de pessoas. Esta era a situação de dois anos antes da pandemia, determinada por causas que não serão aqui discutidas, mas que não se limitaram à crise econômica, como se quer propagar e sim, pelas opções tomadas para seu enfrentamento.

Esse quadro, em que a extrema pobreza e a fome retornam em níveis ameaçadores, exige que se pense a transferência de renda em bases mais elevadas. Com a pandemia, que trouxe novos componentes para a realidade econômico-social do país, o tema de uma renda básica permanente avançou para um patamar aonde até hoje não estivera. O Bolsa Família, tal como existiu até hoje, foi um passo decisivo para a construção do que se demanda no presente. Aclamado como o programa de transferência de renda mais bem focado e efetivo, entre as diversas experiências assemelhadas no mundo, requer nesta conjuntura de um forte incremento tanto no valor transferido como no número de famílias a serem beneficiadas. A experiência com o Auxílio Emergencial mostrou de um lado os efeitos sobre a desigualdade monetária e o impacto de temporária redução da pobreza e extrema pobreza, certamente detendo uma explosão de fome que ocorreria, bastante mais acentuada do que já ocorre. Mas, de outro lado, mostrou também tudo o que não deve ser feito em termos de sua implementação. A redução à metade do valor a ser transferido e o expurgo de beneficiados sem explicações convincentes na última prorrogação do Auxílio projetam para o final de 2020 um crescimento expressivo de pessoas que ficarão privadas de uma alimentação suficiente e adequada. Isto mais agravado com a escalada altista dos preços dos alimentos básicos, como é o caso do arroz, feijão e outros. E na virada do ano encerra-se o Auxílio, com consequências muito preocupantes para o que vem a seguir. Portanto, a ampliação e atualização de valor do Bolsa Família, para o início do próximo ano, ao lado de aperfeiçoamentos sempre possíveis no programa, é impreterível, além da tomada de outras medidas referentes às políticas de segurança alimentar e nutricional que vêm de um processo de desmonte desde 2016. As possibilidades de que isso ocorra são exíguas no contexto político atual, mas os esforços para colocar estas propostas na pauta do debate público poderão colher resultados futuros mais promissores.

O tema da transferência de renda não pode prescindir do objetivo da segurança alimentar e nutricional pelo que ele captura de vida real e de necessidades primeiras do público que deve ser alcançado por um programa dessa modalidade. Ao mesmo tempo, a segurança alimentar e nutricional no caso brasileiro não avançará sem considerar o papel que pode cumprir um programa dessa natureza. A compreensão dessas duas perspectivas nos reforça para o duro embate que temos pela frente.

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